Cirurgião plástico que comanda as missões da Operação Sorriso fala do tratamento voluntário de qualidade dos pacientes com fissura labiopalatina.

Este carnaval não vai ser igual aquele que passou para o cirurgião plástico carioca Henrique Cintra. Ele embarca hoje para Porto Velho, capital da Rondônia, onde fica até o próximo domingo. Não vai aproveitar o feriado para descansar. Pelo contrário. Serão dias intensos de trabalho. Mas não poderia estar mais feliz. Cintra, de 61 anos, comanda a missão humanitária internacional da Operação Sorriso, que vai operar de graça crianças, jovens e adultos de baixa renda com fissura labiopalatina, má formação congênita que pode levar ao isolamento social. A fissura pode ser labial (fenda no lábio superior, popularmente conhecida como lábio leporino) ou palatina (quando a abertura é no céu da boca). Mas há casos

em que a criança nasce com as duas. O mutirão estava previsto para dezembro, mas, pela primeira vez desde que a ONG americana chegou ao Brasil, em 1997, foi cancelado por falta de recursos. Agora, graças à ESBR Energia Sustentável do Brasil, concessionária da Usina Hidrelétrica Jirau, será possível fazer esta e mais três missões a Porto Velho. Ex-aluno de Ivo Pitanguy, Cintra está há 20 anos na Operação Sorriso. Começou como voluntário, integrando a primeira missão da ONG no país, em Fortaleza.

“O professor Pitanguy me pediu que representasse o serviço dele.” Em dezembro passado, foi eleito presidente do conselho médico da Operação Sorriso e agora dirige as missões. Referência em cirurgia reparadora (que corrige lesões deformantes e defeitos congênitos ou adquiridos), ele atua no setor público como diretor médico do Centro de Tratamento de Anomalias Craniofaciais (CTAC) da Uerj, que funciona dentro da Policlinica Piquet Carneiro, e como cirurgião no Hospital Pedro Ernesto e no Hospital Pediátrico Menino Jesus.

Como será a missão em Rondônia?

Somos 64 profissionais voluntários, como cirurgiões plásticos, pediatras, ortodentistas, anestesistas, patologistas, enfermeiros. Tem gente do Brasil, da Suécia, de Honduras, da Jordânia, do Paraguai, do Equador, da Venezuela e dos Estados Unidos. Vamos operar cerca de 60 pacientes para correção de lábio leporino e fenda palatina, durante quatro dias, em quatro mesas simultaneas

Qual a importância dessas cirurgias?

A fissura labiopalatina causa dois tipos de problema. O primeiro é o estético. É uma deformidade facial, no lábio, nos dentes, no nariz. O segundo é o funcional. Compromete a fala, a audição, a respiração, a deglutição, a dentição. Isso provoca infecções respiratórias e de ouvido, depressão, baixa autoestima, problemas odontológicos. A pessoa pode sofrer bullying, não conseguir frequentar a escola, arrumar emprego, casar. Graças às cirurgias, passa a levar uma vida normal: namora, estuda, trabalha. Mas, após a primeira operação, a criança vai precisar ainda de no mínimo 18 anos de tratamento multidisciplinar. Por isso, nas missões, além das cirurgias treinamos e capacitamos profissionais de saúde locais para que o paciente possa continuar a ser atendido em sua própria região.

O que é esse centro que você criou na Uerj?

O Centro de Tratamento de Anomalias Craniofaciais (CTAC) surgiu em 2010. Começou do zero e hoje é a mais completa unidade de cirurgia reparadora de má formações de crânio e de face do Estado do Rio, com ênfase no atendimento à fenda labiopalatina. Somos a resposta dentro do estado para problemas até então de difícil solução no serviço público.

Como uma paciente com paralisia facial de origem congênita e sem expressão, que nunca tinha dado um sorriso na vida. No dia seguinte à operação, já sorria. Operamos um menino que não conseguia abrir a boca. Não escovava os dentes, e só se alimentava de líquidos, por canudinho. Ele revelou que após a cirurgia realizaria o sonho de comer um churrasco. Hoje temos uma fila de espera de 95 pacientes por causa da greve ano passado na Uerj. Com a normalização do serviço, serão operados nos próximos seis meses. Também fizemos uma parceria com a ONG Smile Train que tem melhorado a qualidade do atendimento. Ela tem doado material cirúrgico, fez uma brinquedoteca que humanizou o ambiente de tratamento das crianças e ainda este ano planeja dar uma cabine de audiometria essencial para o diagnóstico de deficiência auditiva.

De onde vem seu envolvimento voluntário?

O exemplo que tive de atividade voluntária e espírito humanitário veio do serviço que o professor Ivo Pitanguy desenvolvia na Santa Casa. Trabalhei anos com ele lá. Além desse ensinamento, acho que tenho que retribuir a sociedade porque a Uerj, onde me formei, me deu a chance de ser quem eu sou. Acredito que é importante motivar as novas gerações a se

interessar pela cirurgia plástica reparadora. Tento fazer isso nas aulas que dou na pós-graduação da PUC e nos congressos de que participo. E felizmente tenho percebido um interesse maior pela especialidade. Os jovens veem que o mercado da cirurgia estética está saturado e vulgarizado, e pensam: “Não vou fazer o que todo mundo está fazendo.” E aí optam por um mercado que tem crescido. Como exemplo de intervenções reparadoras há as cirurgias plásticas pós-bariátricas, as correções de deformidades congênitas e as reconstruções de mama.

Como é operar crianças com fissuras?

Você restitui algo que a natureza não permitiu. Possibilita que uma criança que nasceu sem oportunidade tenha uma adaptação social. Com a cirurgia e o tratamento, ela fica sem sequelas e traumas. Operei uma criança com fissura labiopalatina e hoje ela é uma jovem cantora de uma igreja evangélica. Um ex-paciente meu visitava alguém no hospital quando soube que havia um menino com fissura internado. Ele procurou a família e disse: “Eu tive o mesmo problema que seu filho. Não se sinta mal, é possível corrigir.” E passou meu contato. Operei o garoto. Outra menina nasceu com uma fissura labiopalatina originária de um tumor congênito. Nunca tinha visto uma forma tão grave, o rosto era todo deformado, afetava até a mandíbula. Ninguém dava uma solução. Operei e hoje, três anos depois, é uma menina linda. Minhas crianças são muito felizes.

Fonte: Mauro Ventura – O Globo